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Negritude e Cristianismo






Voltei, recentemente, de mais uma viagem a África, que conheceu, no século XX, um dos mais fenomenais crescimentos da Igreja Cristã em toda a sua História. O centro mesmo do Cristianismo está se deslocando para a África, cujos fiéis, além de continuar a tarefa de evangelização do continente, estão enviando missionários para outras partes do mundo, e os seus líderes – como no caso da Comunhão Anglicana – assumem um protagonismo de crescente influência internacional.



Como sabemos, a Etiópia foi o segundo país monoteísta, resultado de seu intercâmbio com Israel no tempo do rei Salomão e da rainha de Sabá. Desse intercâmbio surgiu o judaísmo negro dos falashas, cuja maioria fugiu para Israel durante a ditadura militar-marxista na segunda metade do século passado. O diálogo entre o Filipe e o eunuco, registrado no livro dos Atos dos Apóstolos, foi o início da presença cristã na Etiópia, que, ao lado do Egito e da Eritreia, estabeleceriam fortes igrejas ortodoxas de linha pré-calcedônica, pujantes até os nossos dias, e com presença missionária em toda a África.



Cristo e o Cristianismo tiveram como epicentro o Oriente Médio, e não a Europa Ocidental. Jesus, quando da perseguição do rei Herodes, foi um refugiado político no Egito. Alexandria foi um dos primeiros centros irradiadores do Cristianismo e elaboradores do pensamento cristão. A Igreja, nos primeiros séculos teve uma forte presença entre os berberes do norte da África. Depois do século sétimo, o norte da África foi se tornando islâmico, e o Islã tem uma significativa presença na África sub-sahariana, especialmente na costa do Índico. Assim, o Cristianismo tem raízes originais na África e não é o resultado apenas das missões ocidentais do século XIX.



Com o processo de descolonização, e de liderança local, tanto as Igrejas Cristãs históricas passaram por um processo de inculturação, o mesmo acontecendo com as igrejas pentecostais, ao lado de um grande número de igrejas (como a Kinbanguista) de expressão nativista. Hoje a África é o cenário de um conflito (ora pacífico, ora violento) entre dois monoteísmos: o Cristianismo e o Islã, sob o olhar antigo do outro monoteísmo: o Judaísmo. Na maioria dos países a chamada “religião dos orixás” ou desapareceu, ou está desaparecendo, ou é algo minoritário ou residual.



Com esse pano-de-fundo, escrevi, há alguns anos, na revista Ultimato, um artigo denominado de Os Terreiros de Jesus.



Em breve, os pesquisadores africanos dessa expressão religiosa precisarão vir até a Bahia ou ao Rio Grande do Sul, no Brasil, para pesquisá-la.



Passei a infância e a adolescência na cidade de União dos Palmares, em Alagoas, olhando para a Serra da Barriga, um dia sede do Zumbi dos Palmares, e hoje um centro de peregrinação a cada 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Como cidadão de um Estado Democrático e como cristão, lamentamos a triste história do escravismo em nossa pátria, e lutamos contra qualquer forma de discriminação, afirmando a dignidade de todas as etnias, como parcelas da humanidade.



É lamentável que, ao contrário dos Estados Unidos, onde se forjou uma cultura negra cristã (“gospel”) peculiar, no Brasil, tanto o catolicismo romano quanto o protestantismo tenham requerido um europeização cultural, um “embranquecimento”, uma ruptura com os traços culturais africanos, para que os negros fossem assimilados pelo Cristianismo.



É lamentável que ainda hoje tenhamos em nossas igrejas cristãs quem demonize a cultura africana “in totum”, como é igualmente lamentável a atitude de grande parte do nosso movimento negro em associar resgate de africanidade com promoção da “religião dos orixás”. No início das comemorações na Serra da Barriga, o então arcebispo negro de João Pessoa, Dom José Maria Pires, iniciava o 20 de novembro com uma celebração da “missa luba” (rito africano), mas os cristãos foram sendo praticamente enxotados pelos seguidores do candomblé, como se houvesse incompatibilidade ou negação entre a fé em Jesus de Nazaré e a negritude.



Creio que o crescente intercâmbio entre o Brasil e a África – especialmente com os países de fala portuguesa – será benéfico, tanto para o Cristianismo brasileiro que irá redescobrir a sua face negra, quanto para os negros (e mestiços = quase todos nós) que redescobrirá na África a face de Cristo.



Creio que no Lausanne III, na Cidade do Cabo, África do Sul, cristãos ocidentais descobriram, entre outras coisas, que se toca o atabaque para Jesus, e que a indumentária das mucamas, que associamos com vendedoras de acarajé ou tapioca, ou com “filhas de santo” nada mais é do que a prosaica roupa cotidiana de professoras de Escola Dominical e de esposas de Diáconos...



Como ítalo-luso-afro-ameríndio, no orgulho da minha mestiçagem, oro e laboro para que todos os povos se encaminhem para o grande coro da Nova Cidade em adoração ao Cordeiro.



Pela Consciência Negra, Branca, Ameríndia e Mulata como todos os pecadores! Pela consciência da Graça que a todos atinge na construção do Reino!



Olinda (PE), 20 de novembro de 2010,

Anno Domini

Fonte:(http://www.dar.org.br/bispo/50-artigos/1685-negritude-e-cristianismo-reflexao-episcopal.html)

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