06:21

Negritude e Cristianismo






Voltei, recentemente, de mais uma viagem a África, que conheceu, no século XX, um dos mais fenomenais crescimentos da Igreja Cristã em toda a sua História. O centro mesmo do Cristianismo está se deslocando para a África, cujos fiéis, além de continuar a tarefa de evangelização do continente, estão enviando missionários para outras partes do mundo, e os seus líderes – como no caso da Comunhão Anglicana – assumem um protagonismo de crescente influência internacional.



Como sabemos, a Etiópia foi o segundo país monoteísta, resultado de seu intercâmbio com Israel no tempo do rei Salomão e da rainha de Sabá. Desse intercâmbio surgiu o judaísmo negro dos falashas, cuja maioria fugiu para Israel durante a ditadura militar-marxista na segunda metade do século passado. O diálogo entre o Filipe e o eunuco, registrado no livro dos Atos dos Apóstolos, foi o início da presença cristã na Etiópia, que, ao lado do Egito e da Eritreia, estabeleceriam fortes igrejas ortodoxas de linha pré-calcedônica, pujantes até os nossos dias, e com presença missionária em toda a África.



Cristo e o Cristianismo tiveram como epicentro o Oriente Médio, e não a Europa Ocidental. Jesus, quando da perseguição do rei Herodes, foi um refugiado político no Egito. Alexandria foi um dos primeiros centros irradiadores do Cristianismo e elaboradores do pensamento cristão. A Igreja, nos primeiros séculos teve uma forte presença entre os berberes do norte da África. Depois do século sétimo, o norte da África foi se tornando islâmico, e o Islã tem uma significativa presença na África sub-sahariana, especialmente na costa do Índico. Assim, o Cristianismo tem raízes originais na África e não é o resultado apenas das missões ocidentais do século XIX.



Com o processo de descolonização, e de liderança local, tanto as Igrejas Cristãs históricas passaram por um processo de inculturação, o mesmo acontecendo com as igrejas pentecostais, ao lado de um grande número de igrejas (como a Kinbanguista) de expressão nativista. Hoje a África é o cenário de um conflito (ora pacífico, ora violento) entre dois monoteísmos: o Cristianismo e o Islã, sob o olhar antigo do outro monoteísmo: o Judaísmo. Na maioria dos países a chamada “religião dos orixás” ou desapareceu, ou está desaparecendo, ou é algo minoritário ou residual.



Com esse pano-de-fundo, escrevi, há alguns anos, na revista Ultimato, um artigo denominado de Os Terreiros de Jesus.



Em breve, os pesquisadores africanos dessa expressão religiosa precisarão vir até a Bahia ou ao Rio Grande do Sul, no Brasil, para pesquisá-la.



Passei a infância e a adolescência na cidade de União dos Palmares, em Alagoas, olhando para a Serra da Barriga, um dia sede do Zumbi dos Palmares, e hoje um centro de peregrinação a cada 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Como cidadão de um Estado Democrático e como cristão, lamentamos a triste história do escravismo em nossa pátria, e lutamos contra qualquer forma de discriminação, afirmando a dignidade de todas as etnias, como parcelas da humanidade.



É lamentável que, ao contrário dos Estados Unidos, onde se forjou uma cultura negra cristã (“gospel”) peculiar, no Brasil, tanto o catolicismo romano quanto o protestantismo tenham requerido um europeização cultural, um “embranquecimento”, uma ruptura com os traços culturais africanos, para que os negros fossem assimilados pelo Cristianismo.



É lamentável que ainda hoje tenhamos em nossas igrejas cristãs quem demonize a cultura africana “in totum”, como é igualmente lamentável a atitude de grande parte do nosso movimento negro em associar resgate de africanidade com promoção da “religião dos orixás”. No início das comemorações na Serra da Barriga, o então arcebispo negro de João Pessoa, Dom José Maria Pires, iniciava o 20 de novembro com uma celebração da “missa luba” (rito africano), mas os cristãos foram sendo praticamente enxotados pelos seguidores do candomblé, como se houvesse incompatibilidade ou negação entre a fé em Jesus de Nazaré e a negritude.



Creio que o crescente intercâmbio entre o Brasil e a África – especialmente com os países de fala portuguesa – será benéfico, tanto para o Cristianismo brasileiro que irá redescobrir a sua face negra, quanto para os negros (e mestiços = quase todos nós) que redescobrirá na África a face de Cristo.



Creio que no Lausanne III, na Cidade do Cabo, África do Sul, cristãos ocidentais descobriram, entre outras coisas, que se toca o atabaque para Jesus, e que a indumentária das mucamas, que associamos com vendedoras de acarajé ou tapioca, ou com “filhas de santo” nada mais é do que a prosaica roupa cotidiana de professoras de Escola Dominical e de esposas de Diáconos...



Como ítalo-luso-afro-ameríndio, no orgulho da minha mestiçagem, oro e laboro para que todos os povos se encaminhem para o grande coro da Nova Cidade em adoração ao Cordeiro.



Pela Consciência Negra, Branca, Ameríndia e Mulata como todos os pecadores! Pela consciência da Graça que a todos atinge na construção do Reino!



Olinda (PE), 20 de novembro de 2010,

Anno Domini

Fonte:(http://www.dar.org.br/bispo/50-artigos/1685-negritude-e-cristianismo-reflexao-episcopal.html)

19:15

Brasil: um Protestantismo Neoanabatista?

Brasil: um Protestantismo Neoanabatista?

Dom Robinson Cavalcanti ([i])



Samuel Escobar, um dos fundadores da Fraternidade Teológica Latino Americana (FTL), escreveu sobre a “anabatistização” do protestantismo do nosso continente, não importando a denominação. Não é só o fato de apenas aqui as igrejas evangélicas rebatizarem católicos romanos e ortodoxos orientais, contrariando os reformadores e sua prática em outros continentes. Trata-se do anabatismo como ideologia, formada a partir da Reforma Radical, com desdobramentos históricos. Vejamos suas marcas.


1. A “apostasia da igreja” como leitura histórica. Da morte de João ao nascimento de Lutero, tudo o que a igreja fez foi errado e a fez se afastar de sua “pureza” original. Isso se chocava com a Primeira Reforma (Lutero, Cranmer) e a Segunda (Calvino), que consideravam os velhos corpos cristãos não-reformados, a despeito de seus “erros, desvios e superstições”, autênticas expressões do Corpo de Cristo. Essa ideologia desqualifica quinze séculos de história e retira dela a presença do Espírito Santo.


2. O “restauracionismo” como princípio re-fundante. Se todo o passado foi de erros, o novo grupo vai “restaurar” a pureza da igreja, segundo entende (séculos depois) o que era a igreja primitiva. Temos tido ciclos de expressões restauracionistas, dentro do espectro da igreja, na fronteira (adventismo) e fora dela (Testemunhas de Jeová).


3. O “presentismo”. C. S. Lewis denuncia as gerações que, movidas por um sentimento anti-histórico, não levam em conta a tradição apostólica nem o consenso dos fiéis, e querem reinventar a roda, em sua superficialidade.


4. Uma eclesiologia dualista e minimalista. Um dualismo neoplatônico entre organismo (bom, de Deus) e instituição (má, dos homens), entre “igreja invisível” e “igreja visível” que, em uma concepção minimalista, é a “igreja local” (congregação), crendo em uma Igreja de Jerusalém regida pelas regras parlamentares de Westminster. Um conjunto dessas “igrejas locais”, com suas peculiaridades, forma uma “denominação” (conceito novo e extrabíblico), com a demonização das organizações históricas, a negação dos sacramentos e o desprezo pela hierarquia ministerial.


5. Iconoclastia. Rejeição de toda a arte sacra: arquitetura, escultura, pintura, símbolos, vestes, ritos. O inestético é o espiritual; a informalidade, a recuperação da pureza. A psicanálise tem estudado a relação entre neuroses e rejeição à arte, por repressão ao prazer. O “teológico” como fachada para o psicológico. A ideologia anabatista perpassou vários momentos na história da igreja, desde os “entusiastas”, encontrados (e combatidos) no luteranismo e no anglicanismo do século 16, ao menonismo de vários matizes (Amish, huteritas), o pietismo, os Quackers, os Irmãos Livres (Irmãos de Plymouth), o “Pequeno Rebanho” (Watchman Nee/Witness Lee) e suas “igrejas locais”, “igrejas sem nome”, “comunidades evangélicas”, “igrejas nos lares” (House Churches), igrejas emergentes e novas iniciativas. Algumas dessas expressões se pretendem pós-denominacionais, ou não-denominacionais (são apenas variações de igrejas batistas e/ou pentecostais), sem usar esse título, outras mantêm vínculos mínimos, ou estão “hospedadas” nas igrejas históricas ligadas a movimentos ou redes de ideologia de fundo anabatista, que poderíamos denominar de neoanabatismo. Algumas mantêm uma ênfase nas doutrinas históricas, outras afirmam que “as pessoas querem saber de vida e não de doutrinas”, havendo até quem negue o apóstolo Paulo e se resuma à pretensa radicalidade do reino, aos ensinos de Jesus. Uma das marcas do neoanabatismo contemporâneo foi herdada do liberalismo: tornar o evangelho palatável para o homem pós-moderno, como aqueles pretendiam fazer para o moderno.



A cultura secular termina por impor a agenda da igreja, na linguagem, nos métodos, nas abordagens e no próprio conteúdo. “O homem pós-moderno não aceita essas coisas. Não faz sentido.” Um setor tem a preocupação em estabelecer “igrejas locais” para as tribos urbanas. E se esses jovens amadurecerem? Billy Graham, sem menosprezar a importância da comunicação transcultural, diz que atrás de qualquer “casca” está um pecador que necessita se arrepender e depositar a sua fé em Jesus Cristo, e que para todas as culturas há um eterno evangelho a ser anunciado.



Será que as pessoas mais refinadas, artisticamente sensíveis, terão de ficar presas aos extremos da idolatria e da iconoclastia, sem lugar para uma igreja reformada valorizadora da história, do consenso dos fiéis, da reverência e da beleza na adoração, incluindo os símbolos e a liturgia? Quem rejeita a idolatria está condenado ao empobrecimento estético, à iconoclastia do presentismo informalista? O pretensamente “novo” não é apenas um “remake” de velhas iniciativas. O neoanabatismo é um fenômeno crescente, que atinge, mais ou menos, todas as denominações, como rolo compressor em nosso continente e nosso país. Os histórico-estéticos, porém, insistem em sua identidade. As outras expressões do protestantismo, histórico-estéticas, continuam a afirmar outras alternativas para a fé reformada.




[i] Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo – desafios a uma fé engajada e Anglicanismo: Identidade, Relevância, Desafios.

Fonte: http://www.dar.org.br/bispo/51-artigos-ultimato/1730-brasil-um-protestantismo-neoanabatista-reflexao-ultimato.html