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A Doutrina da Predestinação Comentário do Texto de Romanos 8.29-30

John Stott

Primeiro há uma referência a aqueles que Deus de antemão conheceu. Essa alusão a "co-nhecer de antemão", isto é, saber alguma coisa antes que ela aconteça, tem levado muitos comentaristas, tanto antigos como contemporâneos, a concluir que Deus prevê quem irá crer e que essa presciência seria a base para a predestinação. Mas isso não pode estar certo, pelo menos por duas razões: 1) neste sentido Deus conhece todo mundo e todas as coisas de antemão, ao passo que Paulo está se referindo a um grupo específico; 2) se Deus predestina as pessoas porque elas haverão de crer, então a salvação depende de seus próprios méritos e não da misericórdia divina; Paulo, no entanto, coloca toda a sua ênfase na livre iniciativa da graça de Deus.Assim, outros comentaristas nos fazem lembrar que no hebraico o verbo "conhecer" expressa muito mais do que mera cognição intelectual; ele denota um relacionamento pessoal de cuidado e afeição. Portanto, se Deus "conhece" as pessoas, Ele sabe o que passa com elas (Sl 1.6; 144.3); e quando se diz que Ele "conhecia"os filhos de Israel no deserto, isto significa que ele cuidava e se preocupava com eles (Os 13.5). Na verdade Israel foi o único povo dentre todas as famílias da terra a quem Javé "conheceu", ou seja, amou, escolheu e estabeleceu com ele uma aliança (Am 3.2). O significado de "presciência" no Novo Testa-mento é similar: "Deus não rejeitou o seu povo [Israel], o qual de antemão conheceu", istao é, a quem Ele amou e escolheu (11.2 Cf. 1 Pe 1.2). À luz deste uso bíblico John Murray escreve: "'Conhecer' ... É usado em um sentido praticamente sinônimo de 'amar'...Portanto, 'aqueles que ele conheceu de antemão' ... é virtualmente equivalente a 'aqueles que ele a-mou de antemão'". Presciência é "amor peculiar e soberano". Isto se encaixa com a grande declaração de Moisés: "Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos que qualquer povo ... mas porque o Senhor vos amava ..." A única fonte de eleição e predestinação divina é o amor divino.Segundo, aqueles que [Deus] de antemão conheceu, ou que amou de antemão, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogê-nito entre muitos irmãos (29). O verbo predestinou é uma tradução de prooriz, que signifi-ca "decidiu de antemão", como se vê em Atos 4.28: "Fizeram o que o teu poder e tua von-tade haviam decido de antemão que acontecesse" . É, pois, evidente que o processo de tor-nar-se um cristão implica uma decisão; antes de ser nossa, porém, tem de ser uma decisão de Deus. Com isso não estmos negando o fato de que nós "nos decidimos por Cristo", e isso livremente; o que estamos afirmando é que, se o fizemos, é só porque, antes disso, Ele já havida "decidido por nós". Esta ênfase na decisão ou escolha soberana e graciosa de Deus é reforçada pelo vocabulário com o qual ela está associada. Por um lado, ela é atribuída ao "prazer" de Deus, a sua "vontade", "plano" e "propósito" (Ef 1.5, 9, 11; 3.11), e por outro lado, já existia "antes da criação do mundo"(Ef 1.4) ou "antes do princípio das eras"(1 Co 2.7; 2 Tm 1.9; cf. 1 Pe 1.20; Ap 13.8). C. J. Vaughan resume esta questão nas seguintes palavras: "Cada um que se salva no final só pode atribuir sua salvação, do primeiro ao último passo, ao favor e à ação de Deus. O mérito humano tem de ser excluído: e isto só pode acontecer voltando às origens do que foi feito e que se encontra muito além da obediência que evi-dencia a salvação, ou mesmo da fé que a ela é atribuída; ou seja, um ato de espontâneo favor da parte daquele Deus que antevê e pré-ordena desde a eternidade todas as suas obras.Este ensino não pode ser minimizado. Nem a Escritura nem a experiência nos autoriza fazê-lo. Se apelarmos para a Escritura, veremos que no decorrer de todo o Antigo Testamento se reconhece ser Israel 'a única nação da terra' a quem Deus decidiu 'resgatar para ser seu povo', escolhido para ser sua 'propriedade peculiar'; e em todo Novo Testamento se admi-te que os seres humanos são por natureza cegos, surdos e morto, de forma que sua conver-são é impossível, a menos que Deus lhes dê vista, audição e vida."Nossa experiência confirma isso. O Dr. J. I. Packer, em sua excelente obra O Evangelismo e a Soberania de Deus aponta que, mesmo que neguem isso, a verdade é que os cristãos crêem na soberania de Deus na salvação. "Dois fatos demonstram isso", ele escreve. "Em primeiro lugar, o crente agradece a Deus por sua conversão. Ora, por que o crente age as-sim? Porque sabe em seu coração que foi Deus inteiramente responsável por ela. O crente não se salvou a si mesmo; Deus o salvou. (...) Há um segundo modo pelo qual o crente re-conhece que Deus é soberano na salvação. O crente ora pela conversão de outros ... roga a Deus que opere neles tudo quanto for necessário para a salvação deles". Assim os nossos agradecimenos e a nossa intercessão provam que nós cremos na soberania divina. "Quando estamos de pé podemos apresentar argumentos sobre a questão; mas, postados de joelhos, todos concordamos implicitamente" .Mesmo asim há mistérios que permanecem. E, como criaturas caídas e finitas que somos, não nos cabe o direito de exigier explicações ao nosso Criador, que é perfeito e infinito. Não obstante, ele lançou luz sobre o nosso problema de tal maneira a contradizer as princi-pais objeções que são levantadas e a mostrar que a predestinação gera conseqüências bem diferentes do que se costuma supor. Vejamos cinco exemplos.1. Dizem que a predestinação gera arrogância, uma vez que (alega-se) os eleitos de Deus se gloriam de sua condição privilegiada. Mas acontece é justamente o contrário: a predestina-ção exclui a arrogância, pois afinal, não dá para entender como Deus pôde se compadecer de pecadores indignos como eles! Humilhados diante da cruz, eles só querem gastar o resto de suas vidas "para o louvor da sua gloriosa graça"e passar a eternidade adorando o Cordei-ro que foi morto.2. Dizem que a predestinação produz incerteza e que cria nas pessoas uma ansiedade neuró-tica quanto a serem ou não predestinadas e salvas. Mas não é bem assim. Quando se trata de incrédulos, eles nem se preocupam com a sua salvação - até que, e a não ser que, o Espí-rito Santo os convença do pecado, como um prelúdio para a sua conversão. Mas, se são crentes, mesmo que estejam passando por um período de dúvida, eles sabem que no final a sua única certeza consiste na eterna vontade predestinadora de Deus. Não há nada que pro-porcione mais segurança e conforto do que isso. Como escreveu Lutero ao comentar o ver-sículo 28, a predestinação "é uma coisa maravilhosamente doce para quem tem o Espírito" (Lutero).3. Dizem que a predestinação leva à apatia. Afinal, se a salvação depende inteiramente de Deus e não de nós, argumentam, então toda responsabilidade humana diante de Deus perde a razão de ser. Uma vez mais, isso não é verdade. A Escritura, ao enfatizar a soberania de Deus, deixa muito claro que isso não diminui em nada a nossa responsabilidade. Pelo con-trário, as duas estão lado a lado em um antinomia, que é uma aparente contadição entre duas verdades. Diferentemente de um paradoxo, uma antinomia "não é delieradamente pro-duzida; ela nos é imposta pelos próprios fatos ... Nós não a inventamos e não conseguimos explicá-la. Não há como nos livrar dela, a não ser que falsifiquemos os próprios fatos que nos levam a ela"(J. I. Packer). Um bom exemplo se encontra no ensino de Jesus quando declarou que "ninguém pode vir a mim, se o Pai ... não o atrair" (Jo 6.44) e que "vocês não querem vir a mim para terem vida" (Jo 5.40). Por que as pessoas não vão a Jesus? Será por-que não podem"Ou é porque não querem? A única resposta compatível com o próprio ensi-no de Jesus é: "Pelas duas razões, embora não consigamos conciliá-las" .4. Dizem que a predestinação produz complacência e gera antinomianos. Afinal, se Deus nos predestinou para a salvação, por que não podemos viver como nos agrada, sem restri-ções morais, e desafiar a lei divina? Paulo já respondeu esta questão no Capítulo 6. Aqueles que Deus escolheu e chamou, ele os uniu com Cristo em sua morte e ressurreição. E agora, mortos para o pecado, eles renasceram para viver para Deus. Paulo escreve também em outro lugar que "Deus nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis em sua presença (Ef 1.4 cf. 2 Tm1.9). Ou melhor, ele nos predestinou para sermos conformes à imagem de seu Filho.5. Dizem que a predestinação deixa as pessoas bitoladas, pois os eleitos de Deus passam a viver voltados apenas para si mesmos. Mas o que acontece é o contrário. Deus chamou um único homem, Abraão, e sua família apenas, não para que somente eles fossem abençoados, mas para que através deles todas a famílias da terra pudessem ser abençoadas (Gn 12.1ss). Semelhantemente, a razão pela qual Deus escolheu seu Servo, a figura simbólica de Isaías que vemos cumprida parcialmente em Israel, mas especialmente em Cristo e em seu povo, não foi apenas para glorificar Israel, mas para trazer luz e justiça às nações (Is 40.1ss; 49.5ss). Na verdade estas promessas serviram de grande estímulo para Paulo quando ele, num ato de grande ousadia, decidiu ampliar sua visão evangelística para alcançar os genti-os. Assim, Deus fez de nós seu "povo exclusivo", não para nos tornarmos seus favoritos, mas para que fôssemos suas testemunhas, "para anunciar as grandezas daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz"(1 Pe 2.9ss).Portanto, a doutrina da predestinação divina promove humildade, não arrogância; segurança e não apreensão; responsabilidade e não apatia; santidade e não complacência; e missão, não privilégio. Isso não significa que não existam problemas, mas é uma indicação de que estes são mais intelectuais que pastorais.Coleção A Bíblia Fala Hoje - Romanos, John Stott, pp. 300-304.

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