Robinson Cavalcanti
O passado
De uma perspectiva meramente histórica, as religiões ou crescem, ou desaparecem. Quando se fala na tão propalada Janela 10/40, refere-se sempre aos povos não-alcançados. Na verdade, esses povos já foram alcançados, pois no norte da África, no Oriente Médio e em parte da Ásia o cristianismo foi uma presença florescente nos primeiros seis séculos de sua história. Alexandria e Hipona foram cidades de referência. Os nestorianos (Igreja Assíria do Oriente), em seu apogeu, tinham quatrocentas dioceses, 4 milhões de seguidores, inclusive no Irã, no Afeganistão e na China. Pode-se dizer que, de certa forma, eles foram “desalcançados”, embora o cristianismo nunca tenha desaparecido de todo dessas regiões, mantendo uma presença ininterrupta, ainda que minoritária, por 2 mil anos. A invasão mongol, a invasão do Islã e a fragilidade do nominalismo religioso tiveram um efeito devastador. As comunidades remanescentes, com toda a sua riqueza histórica, teológica e litúrgica, foram proibidas de crescer e/ou perderam a visão do crescimento.
O cristianismo tem se expandido, ao longo dos séculos, como uma religião de salvação, uma religião missionária, uma religião de expansão. Quando o espírito missionário cessa, em cada época e lugar, inicia-se o declínio. Tenho visitado em vários países ruínas de igrejas e igrejas em ruínas, igrejas museus e museus igrejas. No caso da Europa Ocidental, já se fala hoje, realística e lamentavelmente, de uma civilização “pós-cristã”.
Se as igrejas orientais cresceram no Oriente Médio, no mundo helênico, no mundo eslavo e na Ásia no primeiro milênio, a Igreja de Roma, por sua vez, ao lado dos conquistadores, teve nos séculos 16 a 18 um período de marcada expansão, principalmente, na América Latina. Os últimos 200 anos, por sua vez, têm se caracterizado pela expansão mundial do ramo reformado ou protestante. Chegamos ao século 21 com o cristianismo como uma religião global, começando a atingir o estágio de chegar “aos confins da terra”. No Congresso de Berlim, em 1966, tivemos uma reação à perda de fervor evangelístico do cristianismo ocidental, em virtude de duas distorções soteriológicas que marcaram o seu pensamento nas décadas anteriores: o sacramentalismo (todos os batizados estão salvos) e o universalismo (todos estão salvos). O Congresso de Lausanne foi uma reafirmação da necessidade missionária da Igreja, agora internacionalizada, pela responsabilidade de todas as nações para com todas as nações.
As últimas três décadas do século 20 marcaram uma crescente consciência missionária nos povos do chamado Terceiro Mundo, e, no caso particular do nosso Continente, com a realização dos CLADE’s (Congresso Latino-Americano de Evangelização) I, II, III e IV. A Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), de forma pioneira, promoveu o I Congresso Missionário em nosso país, na Universidade Federal do Paraná, no início de 1976. O interessante é que algumas revistas evangélicas brasileiras de ampla circulação têm tratado, recentemente, do crescente envolvimento das igrejas evangélicas brasileiras com a missão mundial e, ao mesmo tempo, apontado as suas debilidades metodológicas, estratégicas, de inculturação e do conteúdo da própria missão.
Os desafios
Há dois anos, o conhecido professor de história e sociologia da religião da Universidade do Estado da Pensilvânia Phillip Jenkins lançou o livro A Próxima Cristandade, que tem se tornado uma referência por seu caráter peculiar de ser, ao mesmo tempo, abrangente, profundo e escrito em linguagem acessível. Recentemente, o livro foi traduzido para o português (Editora Record), e não sei se está recebendo entre nós o mesmo merecido valor. Jenkins chama atenção para o contínuo deslocamento do pólo central de irradiação da fé cristã: Jerusalém, Antioquia, Constantinopla, Roma e, depois, Alemanha, Inglaterra e os Estados Unidos. No passado, tivemos o deslocamento do Oriente Médio para a Europa Ocidental e a América do Norte. Hoje, após o Império Otomano e o Império Soviético, o cristianismo oriental está debilitado, enquanto que o racionalismo e o ceticismo presentes no liberalismo teológico, tanto moderno quanto pós-moderno, tem gerado uma crise, talvez, irreversível para o cristianismo euro-ocidental e norte-americano.
O cristianismo sofre atualmente um outro deslocamento, dessa vez do norte para o sul (África, Ásia e América Latina), que marcará, sem dúvida, as próximas décadas do século 21. É aqui que as igrejas estão cheias, onde há jovens, onde se renova a liturgia e onde a consciência do místico, do mistério, está presente, ao lado da defesa da ortodoxia doutrinária apostólica, da autoridade das Sagradas Escrituras e de uma ética de princípios baseada na Bíblia e na tradição. Aqui ainda se acredita em conversões e milagres, nas potestades espirituais (tanto da bondade quanto da maldade) e na possibilidade de libertação do poder destas últimas. Olhando-se para o mapa da cristandade, pode-se perceber um conflito entre o “cristianismo do Norte” e o “cristianismo do Sul”, com clara vantagem para este último. No sul, há igrejas de pensamento nortista (e são as que estão estagnadas), e no norte já se encontram bolsões de igrejas sulistas, em processo de reevangelização.
Para Jenkins, o secularismo da sociedade globalizada consumista, por um lado, e o Islã, por outro, serão os dois grandes desafios a serem enfrentados nas tarefas evangelísticas e apologéticas da igreja cristã. Ao lado disso, o triunfo de expressões moderadas ou extremadas das diversas religiões concorrerão para uma ordem internacional democrática estável e pacífica ou, usando a expressão de Samuel Huntinghton, para um “choque de civilizações”.
No caso particular da Comunhão Anglicana, vivemos todas as características descritas por Phillip Jenkins. Na Nigéria, em quinze anos, passamos de 9 para 17 milhões de membros, e há uma mobilização para dobrar esse número nos próximos três anos. Metade dos anglicanos vivem no continente africano. O anglicano típico “é uma mulher negra, africana, pobre e de menos de 30 anos de idade”. Em visita recente à Malásia, fiquei impressionado com o trabalho evangelístico dos anglicanos abrindo igrejas em Camboja, Tailândia e Indonésia. Esse pujante ramo histórico e reformado do cristianismo, que tem produzido teólogos do calibre de John Stott, J. I. Packer, C. S. Lewis, Michel Greene, Alistair McGrath e tantos outros, convive com uma Inglaterra (seu berço) pós-cristã e com os Estados Unidos (à semelhança de outras denominações) às voltas com uma grave crise teológica e moral, da qual a questão homossexual é uma das faces mais visíveis.
E nós com isso?
O Brasil, por sua vez, com 6 milhões de evangélicos (e ainda crescendo), profundamente fragmentado institucionalmente, débil em reflexão teológica e ética, importador acrítico de “pacotes” vindos do exterior, superficial (“oba-oba”), intimista e verticalista em sua fé, liderado por caciques que ardem na fogueira da vaidade, ainda assim, na esperança de que a graça transformadora de Deus opere em nosso meio, detém um potencial imenso em termos de responsabilidade da missão mundial da Igreja. Já temos recursos humanos, materiais e intelectuais da melhor qualidade; percebemos uma concepção, crescente, de uma missão integral; ainda acreditamos em céu e inferno, na realidade das afirmações doutrinárias dos credos e na segunda vinda de Cristo. E, o mais importante, a grande maioria dos evangélicos brasileiros de alguma maneira pode testemunhar uma experiência de conversão, afirmando o poder do Espírito Santo e a Jesus Cristo como único Senhor e Salvador.
Apesar do cansaço de muitos de nós e dos momentos de desânimo, a volta constante ao texto das Sagradas Escrituras e a busca incessante da iluminação do Espírito Santo nos devolvem a esperança de um futuro melhor para a igreja brasileira, enquanto chamamos a atenção para um mundo em mudança, que nos atinge, e da nossa responsabilidade de guardar o sagrado depósito e de levar Cristo às nações, até que Ele venha.
Sola Scriptura!
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